A primeira memória que me vem à mente é a do armário cheio de roupas lindas e os nossos olhinhos, meus e da minha irmã, brilhando e desejando vestir cada uma daquelas peças para desfilar. Minha avó era essa mulher cheia de força e personalidade, elegante em cada gesto. Meio durona às vezes, mas também era aquela que fazia um casulo com o edredom pra gente não sentir frio à noite.Conversava sobre viagens e os lugares que já tinha conhecido e adorava nos levar ao centro da cidade para irmos ao Theatro Municipal ou tomar um lanche na Confeitaria Colombo. Essas lembranças surgem sem dificuldade na minha mente e trazem junto a sensação gostosa desses momentos vividos juntas. Saudade.Não consigo me lembrar bem do dia em que ela me reconheceu pela última vez. Mas me lembro bem do dia em que ela não reconheceu a Carolina, sua primeira bisneta, minha filha. Lembro do olhar confuso, perguntando quem era aquela menina tão linda. Lembro da tristeza nos olhinhos da Carolina ao perceber que pra “Nanny bisa” ela não existia mais. Foi um dos momentos mais tristes que vivemos juntas.Acho que até mais triste do que quando passamos juntas pela morte do meu avô, companheiro de vida dela por quase 70 anos. Naquele dia, ela não estava ali. Foi estranho ver a falta de emoção e conexão dela com tudo aquilo que estava acontecendo. Perdíamos uma das pessoas mais importantes das nossas vidas, mas ela não estava ali. Não estava presente.Hoje, acho que talvez ela tenha encontrado um jeito de se proteger da memória. Esquecer talvez tenha sido a forma que encontrou para sobreviver a tudo aquilo. Participar seria duro demais.Coisa estranha a memória. A dela foi se dissipando aos poucos e na mesma medida o seu olhar ia se distanciando, ficando ausente. A fragilidade começava a aparecer de forma tão contundente que se tornou impossível não enxergar. Eu queria não enxergar. Muitas vezes queria não ver e acreditar que eram momentos passageiros e que logo poderíamos conversar normalmente de novo. Desses desejos de criança, que a gente sabe que são pura fantasia mas permite que a criança sonhe. Eu me permitia. Me apegava em cada instante de lucidez e presença como se aquela fosse a realidade, e não a outra.Me lembro bem do dia em que isso mudou. O dia em que eu enxerguei, sem possibilidade de dúvida, que tudo tinha mudado para sempre. Que ela não ia mais voltar. Não aquela avó que eu conheci e convivi por toda a minha vida. A Nanny amarela agora era outra. O mesmo corpo, a mesma aparência, mas não era mais aquela pessoa. O olhar dela não estava mais lá.Nesse dia ela foi ao banheiro, ela ainda conseguia fazer isso sozinha. Minha roupa estava lá dentro porque eu ia tomar banho. Ela começou a demorar bastante, e fui bater na porta, perguntar se estava tudo bem. De repente ela abre a porta e está inteira vestida com as minhas roupas, que eram muito apertadas pra ela. Ela certamente se esforçou muito para vestir aquilo, mas saiu do banheiro com muita naturalidade. Como se nada diferente tivesse acontecido. Eu sorri, disse que ela estava linda. Ela sorriu. Não disse nada. Se dirigiu ao sofá da sala e sentou. Eu chorei. Ela não percebeu. O olhar perdido, o corpo desconfortável dentro das roupas apertadas. Ficamos ali alguns minutos até que eu pudesse levá-la para trocar a roupa. Tristeza. Vazio. Saudade.Algum tempo depois disso, bem pouco tempo na verdade, meu tio concluiu que não tinha mais condições de cuidar dela em casa. Concordamos todos. Estava difícil demais para ele e não tinha revezamento possível, porque sair de casa era para ela um evento desnorteador.Foi lá, nessa casa onde ela mora agora, que não é a casa dela e nem a casa de ninguém, que ela se esqueceu da Carolina. Pouco a pouco, ali ela foi definitivamente se perdendo de si e se desligando do mundo que ela antes conhecia. Faz tempo que não me vejo mais no olhar da minha avó. Faz tempo que eu não a reconheço dentro daquele olhar. Os olhos distantes, sem presença alguma. Um corpo aprisionado nesse lugar entre mundos, o daqui e onde ela hoje habita e eu não consigo alcançar. Saudade. Tristeza. Tristeza que dói. Ela não volta mais.
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